quinta-feira, 8 de outubro de 2009

ALIMENTAÇÃO

Vontade insaciável

Saiba por que alguns alimentos não contribuem com a saciedade e atrapalham a dieta

JULLIANE SILVEIRA DA REPORTAGEM LOCAL PARA A FOLHA DE SÃO PAULO

Você chega ao cinema, e a fome vem. Parece impossível não comprar o maior pacote de pipocas disponível. Assim como é difícil não se impressionar com o quanto foi possível comer nas duas horas de filme.
Além do saco de pipocas, o copo gigante de refrigerante e chocolates podem ser devorados durante a sessão.
É claro que a gulodice e o clima descontraído propiciam o exagero e ajudam a explicar o descontrole. Mas pesquisadores apontam mecanismos fisiológicos e características específicas de alguns alimentos que levam as pessoas a comerem (bem) mais do que deveriam, burlando os mecanismos que levam à sensação de saciedade.
Os limites que devem ser impostos ao comensal para que pare de comer vão além da impressão de estômago cheio. Por isso, reconhecer os ingredientes que levam ao engano do organismo e não se deixar levar somente pela sensação de saciedade para encerrar uma refeição ou uma rodada de petiscos pode ser crucial para evitar ganho de peso indesejado ou prejuízos à saúde.
Há várias tentativas nesse sentido para alertar glutões desavisados. Um livro lançado em abril nos EUA explica por que alguns alimentos não trazem sensação de saciedade quando ingeridos -e sim aquela fissura que faz parecer ser impossível comer um só. Chamado "The Skinny: On Losing Weight without Being Hungry" (o magro: perdendo peso sem passar fome; ed. Broadway Books), ele foi escrito por Louis Aronne, especialista em programas de controle de peso do New York Presbyterian Hospital, e ainda não foi lançado no Brasil.
"É verdade que caloria é sempre caloria. Mas o que não é levado em conta é como algumas calorias afetarão o que as pessoas comerão depois", diz Aronne no livro, explicando por que alguns tipos de comida -independentemente do nível calórico- têm efeito maior no ganho de peso do que outros.
O autor cita alimentos feitos de carboidratos refinados, ricos em açúcar e em gordura como os maiores enganadores da sensação de satisfação. Para Aronne, esses alimentos promovem resistência à saciedade, interferindo nas mensagens enviadas ao cérebro para que o organismo entenda que é hora de parar de comer.
Uma pesquisa norte-americana divulgada no último mês no "Journal of Clinical Investigation" também aponta relações semelhantes.
O estudo, realizado em ratos, mostrou que alimentos que contêm ácido palmítico (substância presente em produtos ricos em gorduras saturadas) alteram a excreção de insulina e de leptina, hormônios relacionados ao apetite e à saciedade.
Nos animais, os efeitos desses alimentos gordurosos duraram por volta de três dias. Teoricamente, como argumentam os pesquisadores, isso pode até ajudar a explicar por que algumas pessoas se sentem mais famintas às segundas-feiras, já que a maioria abusa desses alimentos nos fins de semana.
As descobertas sugerem que, quando se come algo rico em gordura, o cérebro é "atacado" pelo nutriente e se torna resistente à insulina e à leptina, fazendo com que a mensagem de satisfação não seja transmitida.
"Não estamos dizendo para, necessariamente, evitar esse tipo de gordura, e sim que devemos ter uma exposição limitada a ele, não confiando na sensação de estômago cheio como um guia para parar de comer", disse à Folha Deborah Clegg, professora de clínica médica da UT Southwestern Medical Center (EUA) e autora principal da pesquisa.

Gorduras
Alimentos preparados com bastante gordura também são mais agradáveis ao paladar, o que propicia uma maior ingestão desse tipo de comida. "Essas teorias fazem muito sentido, e é provável que tenhamos cada vez mais evidências sobre isso. Em geral, alimentos gordurosos e doces são altamente palatáveis", diz o endocrinologista Walmir Coutinho, professor da PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio.
As gorduras também têm poder sacietógeno (de provocar saciedade) menor do que carboidratos e proteínas. Outros estudos recentes relacionam a excreção de grelina (outro hormônio relacionado ao apetite e à saciedade) e de leptina à ingestão de gorduras.
"A quantidade de alimento e de calorias ingeridas em forma de gordura necessária para levar à produção desses hormônios que levam à saciedade acaba sendo muito maior", explica o endocrinologista Márcio Mancini, presidente da Abeso (Associação Brasileira para Estudos da Obesidade e da Síndrome Metabólica).
Outra relação estabelecida entre o menor poder de saciação das gorduras é o fato de que, em geral, quando a alimentação é rica nesse elemento, também ocorre uma consequente baixa ingestão de fibras, item que ajuda na sensação de saciedade.
A pesquisadora Ana Maria Lottenberg, nutricionista da disciplina de endocrinologia do Hospital das Clínicas de São Paulo, estuda a ingestão de aveia e a ação das fibras do cereal nos mecanismos de regulação da grelina, para entender se a ação do alimento vai além do estômago cheio.
"Quando ficamos algumas horas sem comer, os níveis de grelina sobem na circulação, estimulando o apetite. Alguns trabalhos sugerem que alimentos ricos em fibras, como a aveia, prolongam a queda da grelina, demorando mais tempo para subir de novo e mantendo a sensação de saciedade por mais tempo."
O estudo, realizado com pacientes obesos do Hospital das Clínicas de São Paulo, ainda não tem resultados preliminares. No entanto, os voluntários dizem ficar mais saciados quando fazem uma dieta de baixa caloria acrescida de aveia, o que indica o maior poder de as fibras do cereal trazerem sensação de saciedade.

Mecanismos burladores
Além da resistência aos hormônios, outros mecanismos também ajudam a burlar as mensagens de saciedade emitidas pelo cérebro.
Mudanças sensoriais muito rápidas diminuem a sensação de saciedade, dando subsídios para o que os especialistas chamam de "teoria do contraste dinâmico". Ela ajuda a explicar por que alimentos com propriedades sensoriais que mudam rapidamente no contato com a boca são os preferidos.
É o que ocorre com o sorvete, por exemplo. A temperatura do corpo faz com que o alimento mude de sólido para líquido, o que leva o organismo a libertar substâncias que superestimulam o prazer pelo alimento. "Aí ocorre a vontade de comer mais. O mesmo acontece com a pipoca, o chocolate...", explica a nutricionista Denise Mourão, pesquisadora do Grupo de Estudos em Nutrição e Obesidade da UFV (Universidade Federal de Viçosa). Ao entrar em contato com a boca, o chocolate e a pipoca também mudam de textura, como o sorvete.
Mourão enfatiza que a indústria de alimentos também busca manipular os mecanismos de saciedade com uma superestimulação sensorial por meio de aromas e sabores. Dessa forma, é possível fazer com que as pessoas comam mais, quase de maneira descontrolada.
Um exemplo disso são os aromas artificiais embutidos em alimentos, como as batatas tipo chips com sabores de queijo ou de churrasco e os biscoitos com sabor de pizza ou de ervas.
"É cada vez mais difícil achar alimentos industrializados com sabor natural, porque os aromas e sabores artificiais fazem você ter uma estimulação maior. Em vez de senti-los por dez minutos, eles permanecem por muito mais tempo", diz. Os aromas artificiais que mais estimulam o apetite são os encontrados nas batatas fritas, o de baunilha (predominante em alimentos doces) e o de pipoca.
Nessa linha, as grandes redes de fast food também investem bastante para estimular o consumo exacerbado. "É bem estabelecido que o alimento mais palatável provoca maior ingestão porque, obviamente, é mais saboroso. Então, especialistas fazem alterações químicas e físicas no alimento, criando um "supersanduíche" microscopicamente formulado -não é um cozinheiro que faz o hambúrguer, e sim neurofisiologistas, engenheiros de alimentos", alerta Mourão.

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