sábado, 17 de janeiro de 2009

Disseminação da Obesidade - Drauzio Varella

Publicado na Folha de São Paulo, sábado 17 de janeiro de 2009 (link, somente assinantes).

Não consigo pensar num setor da economia que se beneficiasse com o combate à obesidade

TODOS OS ventos sopram a favor da disseminação de uma epidemia de obesidade de consequências trágicas. Vejamos:
1) Ganhar peso é bom para a agropecuária.
Vivemos uma revolução tecnológica sem precedentes na história da agricultura. A modernização das técnicas de plantio, da infraestrutura de transporte e de armazenamento aumentou a produtividade, reduziu o desperdício e fez cair os preços. Jamais a população brasileira experimentou tamanha fartura ou teve acesso a tantos alimentos de qualidade.
Quanto perderia a agropecuária se a população selecionasse com mais critério e reduzisse a quantidade de alimentos consumidos?
2) Ganhar peso é bom para a atividade industrial.
A tecnologia levou à produção em massa de biscoitos, refrigerantes, queijos, embutidos, sorvetes, pães, doces e chocolates que superlotam as estantes dos supermercados. Existe vendinha no lugarejo mais remoto, em que não seja possível encontrar refrigerantes e pacotes de salgadinho?
Atenta à progressão da epidemia, a indústria alimentícia investiu pesado nos alimentos e refrigerantes "light". Quem os consumiria se todos fossem magros?
No passado as mulheres cozinhavam e as refeições aconteciam em casa. Hoje, quem pode ter esse privilégio? As refeições são feitas em bares, restaurantes "por quilo", lanchonetes de fast food. Quantos ficariam desempregados se fossem adotadas dietas mais frugais?
A indústria que produz medicamentos para diabetes, hipertensão, doenças cardiológicas e as três ou quatro drogas indicadas para combater (sofrivelmente) a obesidade ganharia se as pessoas comessem menos e fizessem mais exercício?
Os fabricantes de televisores, automóveis, escadas rolantes, computadores e jogos eletrônicos: quanto perderiam se crianças e adultos abandonassem a vida sedentária?
3) Ganhar peso é bom para a publicidade e os meio de comunicação.
As campanhas publicitárias de alimentos industrializados movimentam bilhões. Vivemos bombardeados por comerciais de cervejas, refrigerantes e de alimentos que nada mais são do que gorduras e carboidratos em embalagens atraentes.
Quando um fabricante anuncia um novo salgadinho em forma de elefante, sabe que a criança pedirá aos pais para comprar exatamente aquele. Que produtor investiria para exaltar as vantagens da laranja em vez da torta de chocolate na sobremesa, sem nenhuma segurança de que o consumidor compraria a laranja produzida por ele?
Sinceramente, não consigo pensar num único setor importante da economia que se beneficiasse com o combate às forças que incentivam a obesidade.
4) A medicina pouco pode ajudar.
Descontada a possibilidade de receitar os três ou quatro medicamentos citados, limitamo-nos a recomendar ao obeso o que ele está farto de saber: "Coma menos e ande mais". Convenhamos, leitor, é tão ridículo quanto dizer ao alcoólatra para beber com moderação. Se o gordo conseguisse ser mais ativo fisicamente e parcimonioso à mesa, não estaria diante do médico pedindo ajuda para emagrecer.
Quanto mais estudamos os genes, os mediadores hormonais e os neurotransmissores envolvidos nos mecanismos de fome e saciedade, mais complexos e interligados eles revelam ser, maior nossa dificuldade em compreendê-los e de interferir com eles.
É pouco provável que surja um remédio eficaz indicado para todos os casos. O tratamento da obesidade exigirá o emprego de múltiplas drogas administradas por longos períodos de tempo ou até pela vida inteira, eventualmente.
5) Perder peso é lutar contra a natureza humana.
Assim que o cérebro detecta diminuição dos depósitos de gordura, a energia que o corpo gasta para exercer suas funções básicas em repouso (metabolismo basal) cai dramaticamente, ao mesmo tempo em que são enviadas mensagens bioquímicas irresistíveis para irmos atrás de alimentos.
Infelizmente, quando ocorre aumento de peso, os sinais opostos são quase imperceptíveis: não há aumento substancial da energia gasta em repouso, a fome não diminui nem surge estímulo para aumentar a atividade física.
O corpo humano tende a defender o peso mais alto que já atingiu. O organismo protege as reservas de gordura mesmo quando estocadas em quantidades excessivas. A mais insignificante tentativa de reduzi-las é interpretada pelo cérebro como ameaça à integridade física.
É ignorância imaginar que emagrecer seja simples questão de força de vontade.

sábado, 3 de janeiro de 2009

As estatinas na cardiologia preventiva

Por Daniel Steinberg, M.D., Ph. D. para a New England Journal of Medicine em 2 de outubro de 2008; 359(14):1426

A descoberta das estatinas por Akira Endo e colaboradores em 1976 abriu a porta para uma nova era de prevenção na cardiologia. A importância desta descoberta foi recentemente ressaltada pelo recebimento por Endo do prêmio de Pesquisa Médica Clínica Albert Lasker 2008. Ao inibir a biossíntese de colesterol endógeno, as estatinas reduzem os níveis elevados de colesterol no sangue com muito mais eficiência que qualquer dieta ou regime de medicamentos disponíveis até a descoberta de Endo. Além disso, são notavelmente livres de efeitos adversos graves.

A hipótese que níveis elevados de colesterol no sangue representa uma causa importante de aterosclerose e doença coronariana – a "hipótese lipídica" – foi controversa por muitos anos. Ceticismo sobre esta hipótese persistiu em alguns focos a despeito do acúmulo constante de evidências lhe dando suporte em experimentos com animais, achados notáveis em famílias com hipercolesterolemia familiar, correlações epidemiológicas consistentes e vários pequenos (mas mesmo assim impressionantes) estudos clínicos. Em contraste, na década de 60 muitos ou a maioria dos lideres no campo das pesquisa com lipoproteínas e aterosclerose estavam convencidos que as evidências acumuladas justificavam intervenções que reduzissem os níveis de colesterol no sangue.

A American Heart Association (Associação Americana do Coração) começou a recomendar mudanças dietéticas para controlar os níveis de colesterol desde 1960. Dieta apenas, contudo, provou não ser o bastante em casos graves e as drogas disponíveis então tinham efetividade limitada. As companhias farmacêuticas estavam explorando cada possibilidade de intervenção, mas tais explorações não estavam entre as maiores prioridades. Colestiramina, um inibidor da reabsorção de ácido biliar, estava entre os medicamentos mais eficazes, mas não era saborosa de tomar e a aderência era baixa. Contudo o National Institutes of Health [NIH] (Instituto Nacional de Saúde) patrocinou o estudo Coronary Primary Prevention Trail, um estudo clínico de 7 anos, randomizado, duplo-cego de colestiramina entre 3800 homens com hipercolesterolemia. O estudo mostrou uma significativa redução em 20% na taxa de doença coronariana fatal ou infarto não fatal. Com estes achados em mãos o NIH convocou um conselho de consenso para rever todos os dados relevantes. Com base nas conclusões deste conselho, o NIH declarou em 1985 que diminuir os níveis de colesterol no sangue deveria ser um objetivo maior. A caçada por medicamentos que reduzissem as gorduras se intensificou, mas a controvérsia sobre o colesterol não acabou totalmente.

Reduzir o colesterol por inibir a biossíntese de colesterol endógeno mostrou em estudos com animais ser possível, e na década de 60, muitas companhias estavam buscando moléculas que bloqueassem 1 dos mais de 30 passos na síntese do colesterol a partir do acetil-coenzima A (CoA). Dúzias, talvez centenas, de homólogos de intermediários (que serviriam como miméticos não funcionantes) ao longo da via foram sintetizados. Poucos foram efetivos em sistemas acelulares e menos ainda foram eficazes in vivo, e quase todos falharam em nível clínico.

Em 1971, Endo, então um jovem investigador na Sankyo Pharmaceutical Company em Tóquio, especulou que se alguns fungos eram potentes inibidores de crescimento microbiano então alguns poderiam ser potentes inibidores da síntese de colesterol. A Sankyo possuía um grande programa para seleção de caldos de cultura de fungos para uma melhor penicilina, e Endo começou a sistematicamente selecionar cada caldo de fungo por sua habilidade em inibir a síntese de colesterol. Por 2 anos os resultados foram uniformemente desapontadores. Somente após aproximadamente 6000 testes Endo identificou um caldo promissor. Como ele relatou em 1976, o caldo com Penicillium citrinum continha um composto, ML-236B, que a notáveis baixas concentrações (2,6x10-8 M), inibia a incorporação de acetato dentro do colesterol, reduzindo a taxa de síntese à metade. Em contraste, ML236B não inibia a incorporação de ácido mevalônico, um achado que indicava o local da ação do ML-236B era antes do passo da 3-hidroxil-3-metilglutaril(HMG)-CoA redutaze, que o passo limitante na formação do colesterol. Endo reconheceu que a estrutura de seu inibidor incluía um domínio com uma grande semelhança à HMG e corretamente concluiu que ML-236B agia especificamente no passo da HMG-CoA redutase. Este composto, depois apelidado de "compactina", demonstrado rapidamente por Endo e colaboradores, funcionava in vivo em vários animais e também em pessoas heterozigotas para hipercolesterolemia familiar. Nestes pacientes, que eram notoriamente difíceis de tratar, Endo conseguiu reduções de 20 a 30% nos níveis de colesterol total. Era claro o poder da nova arma acrescentada ao arsenal contra o colesterol elevado. A Sankyo nunca vendeu a compactina (atualmente chamada mevastatina) por preocupação sobre potencial toxicidade, depois provadas sem fundamento. Contudo, a importância da descoberta de Endo não passou despercebida pela indústria farmacêutica. Merck foi a primeira a comercializar a lovastatina, e os estudos clínicos feitos pela Merck com a lovastatina e a sinvastatina resolveram quaisquer dúvidas quanto à eficácia e segurança de reduzir os níveis de colesterol. Embora estudos anteriores com dieta ou outros medicamentos mostrassem reduções significativas nas taxas de eventos cardiovasculares importantes, não mostrava qualquer redução na mortalidade total. Em contraste, os estudos com a lovastatina e a sinvastatina, que envolvia muitos sujeitos, mostraram uma diminuição significativa – 20 a 30% – na mortalidade total, além de reduzir a mortalidade por causa cardiovascular. Mostraram também benefícios tanto em homens quanto mulheres, em idosos e jovens e naqueles com e sem diabetes. Exceto por causar desconforto muscular, que raramente é bastante grave para descontinuar o tratamento, as estatinas provaram ser geralmente seguras. Graças à descoberta das estatinas por Endo a hipótese lipídica não precisa mais de defensores. Os resultados falam por si.

E sobre os 70% dos pacientes que apresentam eventos cardiovasculares adversos a despeito do uso de estatinas? Nós já fomos o mais longe que podíamos? Provavelmente não. Se nós combinarmos estatinas com outros medicamentos, os níveis de LDL colesterol podem ser reduzidos não apenas em 30% mas em 50%. Expertos prevêem que se o tratamento é começado precocemente e outras intervenções são usadas para reduzir todos os fatores de risco tratáveis além de diminuir o LDL colesterol, o efeito sobre a doença e a mortalidade serão ainda maiores. As estatinas revolucionaram a cardiologia preventiva, e indubitavelmente continuarão a ter um papel de destaque no futuro.